Um cego que não tendo olhos viu e muitos cegos
que tendo olhos não viram.
Esta cegueira de olhos abertos divide-se em 3
espécie de cegueira, ou falando medicamente, divide-se em cegueira da 1ª, da 2ª
e da 3ª espécie.
A 1ª é de cegos que veem e não veem
juntamente.
A 2ª é dos cegos que veem uma coisa por
outra.
A 3ª é dos cegos que vendo o demais, só a sua
cegueira não veem.
A 1ª espécie de cegueira.
A dos fariseus que vendo o milagre de Jesus
não viam o milagroso. Os discípulos viam e não viam Cristo ressuscitado, viam
sem ver porque os olhos estavam com Cristo vivo, o pensamento estava na
sepultura com Cristo morto.
Nós não vemos o que vemos só por desatenção e
divertimento da vista. Porque os nossos olhos olham sem tento.
Assim há muitos que veem sem olhar porque
veem sem atenção.
Não basta ver para ver; é necessário olhar
para o que se vê.
Não vemos as coisas que vemos, porque não
olhamos para elas.
Vemo-las sem advertência e sem atenção, e a
mesma desatenção é a cegueira da vista.
2ª espécie de cegueira.
É a cegueira causada pela paixão.
É a cegueira dos que veem uma coisa por
outra.
Vejo os homens como árvores, dizia o cego ao
ser curado… Isto é ver às avessas.
Eva também tinha os olhos abertos e não via o
que via e via o que não via.
Como pode haver homens tão cegos que com os
olhos abertos não vejam as coisas como são?
Este engano da vista procede da ignorância.
O rústico porque é ignorante vê que a lua é
maior que as estrelas, mas o filósofo porque é sábio e mede as quantidades e
distâncias, vê que as estrelas são maiores.
O filósofo sabe distinguir o verdadeiro do
aparente.
Mas é por causa da paixão.
A paixão é que erra, é que engana, lhes
perturba e troca as coisas para que vejam umas coisas por outras.
Confundem e trocam as coisas os olhos
perturbados com alguma paixão.
Os Apóstolos não viam porque estavam cheios
de medo.
As paixões são duas capitais: Amor e ódio.
Se os olhos veem com amor, o corvo é branco;
se com ódio, o cisne é negro.
Se com amor o demónio é formoso; se com ódio
o anjo é feio.
Com amor o pigmeu é gigante; com ódio o gigante
é pigmeu.
Os olhos veem pelo coração.
3ª espécie de cegueira.
É cegueira causada pela presunção.
Veem tudo, só a sua cegueira é que não veem.
O cego que conhece a sua cegueira não é de
todo cego, porque pelo menos vê o que lhe falta.
O último extremo da cegueira é padecê-la e
não a conhecer.
A natureza quando tira o sentido da vista,
deixa o sentido da cegueira, para que o cego se ajude dos olhos alheios.
Os Escribas e os fariseus eram tão cegos, mas
diziam que os outros é que eram cegos.
Eram cegos a guiarem outros cegos.
Quem é mais cego?
O que guia ou o que é guiado?
Muito mais o que guia porque o que se deixa
guiar, vê e sabe que é cego, mas o outro é tão cego que cuida que pode
emprestar os olhos ao outro.
O primeiro é cego uma vez, o segundo duas
vezes.
Um porque é, outro porque desconhece.´
Nós somos cegos porque não vemos, fátuos
porque não conhecemos a nossa cegueira.
Não é cegueira a soberba? A inveja? A cobiça?
A ambição? A pompa? O luxo?
Como havemos de buscar remédio para a nossa
cegueira?
A causa da 1ª cegueira é a desatenção; da 2ª
é a paixão, da 3ª é a presunção que é a maior de todas.
Em vez de buscar guias, fazemo-nos guias.
Mas quem és tu para guiar os outros?
Nós vemos as nossas cegueiras?
Confessamos que as vemos? Mas se não as remediamos
é que as não vemos.
Ver e não remediar não é ver.
Deus viu a aflição do povo no Egipto e agiu.
Príncipes, reis, senhores do mundo: vedes a
ruina dos vossos reinos? Vedes as aflições e misérias do povo? Vedes as
violências e opressões? Ou vedes ou o não vedes. Se vedes, como o não
remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.
Eclesiásticos, vedes aos destroços da fé, o
decaimento da religião, o desprezo das leis divinas, os abusos, sacrilégios,
blasfémias…? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se
o não remediais como o vedes? Estais cegos.
Homem cristão, vês a fé e o caráter que
recebeste no batismo? Vês a obrigação da lei que professas, vês o eu estado
decaído, vês os perigos? Ou vemos tudo isto, cristãos, ou não o vemos. Se não o
vemos, como somos tão cegos! E se o vemos, como o não remediamos? Fazemos conta
de que o remediar alguma hora ou não? Não deixemos para a hora da nossa morte.
Se algum dia há de ser, se algum dia havemos de abrir os olhos, porque não será
neste dia, hoje?
Que ao menos um cego saia hoje daqui
alumiado!
(Cf. Pe. António Vieira em Sermão 5Q 1669)
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